sábado, 19 de maio de 2012

Crônica do Prof. Antônio Chaves

Origem de Macaúbas
Antônio Chaves[1]
                Quando o bandeirante Antônio Brandão de Souza Figueiredo, nos meados do século XVIII, chegou ao Riacho da Biquinha, a jovem Jandira banhava os pés na cristalina corrente,  em que se espelhava aos primeiros raios do sol, coados pelas palmas das belas macaúbas que margeavam o córrego. Aquela visão fê-lo estacar-se boquiaberto, deslumbrado pelo quadro que se lhe deparava: a virgem, distraída, deixava que a água escorresse por sobre os seus pés, como que absorvida pela Natureza, como se fora um vegetal a mais ali implantado. A sua pele morena, luzidia, reluzia aos raios de ouro do sol brando da manha e os negros e lisos cabelos desciam como fios de seda, cobrindo as largas espáduas. O seu colo nu ostentava róseos mamilos sobressalentes aos robustos seios, subpostos à colorida cinta, à guisa de soutien. Contornava-lhe os quadris uma bela tanga de penas de gavião entrelaçadas e vistosas penas de arara. Ao pescoço, um colar de búzios; do alto da cabeça, um diadema de penacho escarlate. No seu rosto trigueiro, um sorriso largo bendizia a Natureza, agradecendo a Deus a Sua generosidade por lhes ter concedido, a ela e a todos os Tuxás uma Natureza tão pródiga.
                O comerciante forasteiro, que conduzia em sua bagagem preciosa carga, esqueceu todo o seu tesouro e célere correu para a virgem, atraído que fora pelo seu encantamento. Jandira, assustada pela aproximação do intruso, meteu-se pela floresta adentro como raio. Dentro em breve, uma horda de selvagens assomou à vereda próxima e formou um semicírculo à volta do visitante, munida de todas as armas de que dispunham, impulsionados por fortes alaridos.
                Antônio Brandão sentiu que chegara o seu fim e o de seus companheiros. Não  se dispunha a lutar, que essa luta seria inútil em vista da vantagem numérica do inimigo e ambiente propício à vitória dos selvagens. Ademais, não era isso que ele queria. Vinha em missão de paz. Era um andarilho que explorava terras, fundando povoações e levando além sujas preciosas mercadorias. Buscava, de fato, riquezas. Mas uma riqueza que era da terra, de Deus. Não estava tirando nada a ninguém.
                De repente, como inspirado pela força divina, teve um lampejo de imaginação. Um clarão  de idéias brilhantes surgiu em sua mente. Abriu, incontinente, as bruacas e alforjes e deles retirou riquíssimos presentes, entre os quais brilhantes tecidos de seda da Índia, amplos e esplendorosos espelhos e um sem número de objetos de utilidade doméstica que, levantados aos ares, num gesto de oferenda, arrefeceram os ânimos bélicos dos indígenas, fazendo-os compreender que ali estava um amigo. Baixaram as armas, submissos, e se aproximaram como se tivessem sido fisgados pelos objetos, assim como a presa é atraída pela cobra pela força do seu olhar.
                O chefe bandeirante ofereceu-lhe o melhor que tinha e foi conduzido com seus companheiros, por ordem do cacique, à aldeia encravada no sopé da serra, ao local que se denominou posteriormente Coité.
                Recebido com festas pela tribo Tuxá, o bandeirante ficou encantado com a hospitalidade dos seus anfitriões, com a beleza destas paisagens e com a beleza da índia Jandira que, então, mais tímida e mais linda do que quando se encontrava na fonte, o olhava furtivamente com o rabo dos olhos. Fumado o cachimbo da paz, o comerciante e explorador goiano sentiu-se em casa e espraiou-se nestas plagas, tão à vontade se sentiu. Era um homem novo e, ávido de aventuras, alimentava um grande sonho como todos os homens de sua estirpe.
                A sua permanência na aldeia fez crescer em seu coração alguma coisa comparável a uma árvore, cuja semente teria sido lançada no memento em que avistara a virgem tuxá. Mas que árvore sereia essa? Havia, por ventura, no seu peito, terreno humoso, fértil, onde pudesse desenvolver-se, expandir-se tal vegetal? Quando pensava em Jandira ou ela, furtivamente, o olhava, sentia-se sufocado pela folhagem do arbusto que crescia em seu peito. Em outras ocasiões, tinha a impressão de que todo o seu interior estava ramificado pelos ramos poderosos que rachavam os seus pulmões e comprimiam o seu coração, aquecendo-o excessivamente. Seria o baobá do Pequeno Príncipe? Antoine Du Saint Exuperi não previra o desenvolvimento desse monstro no organismo humano. Os danos por ele causados ficariam restritos aos planetas. Não havia por que preocupar-se. Antônio Brandão sentia, porém, o peito rachar-se de dor e pressentia que dentro em breve uma cratera se abriria no seu corpo para expelir as lavas incandescentes, que se acumulavam no vulcão do seu peito. Estranhamente percebeu que esse ardor amainava-se quando ele se aproximava de Jandira. A sua presença era alívio temporário para a sua dor. A presença de Jandira passou a ser o único remédio capaz de afugentar a angústia que o sufocava. Perplexo descobriu que estava irremediavelmente apaixonado por ela, a quem não podia perder de sita. Penetrando na intimidade da tribo, da qual conquistara a amizade e confiança, podia ter Jandira perto de si e observá-la nas suas andanças pelo campo e nos trabalhos domésticos.
                Certa feita, estando a sós na taba, ele vira que a índia prendera uma rede entre duas macaúbas e nela deitara-se graciosamente com os olhos fitas nas flabeladas folhas, que ondulavam ao sabor da brisa crepuscular.
                Entardecia. As graúnas, luzindo no negrume de suas penas, enchiam o espaço de melodia em consonância com as modulações suaves do sabiá, que cantavam entre as tamborilantes folhas do bambual do córrego.
                Hora sublime de devoção. Hora em que os sentimentos afloram ao coração. Hora que  a Natureza derrama sobre todas as criaturas a nostalgia. Hora, portanto, dos mais puros sentimentos, hora do amor.
                Ele fumava sentado num cepo, ao pé da parede de sapé da oca. Fumava e admirava a índia, cujos cabelos caíam nas abas da rede e cujas pernas, morenas e bem torneadas, cruzadas por sobre as fibras macias, deixavam o comerciante estonteado, o qual, alucinadamente, soltava baforadas de fumaça, absorvidas do cachimbo de precioso metal.
                Não resistindo ao encantamento e tentação da mulher, Antônio Brandão dirigiu-se a ela, num gesto de ternura e amor, tomou-a nos braços e estreitou-a contra o largo peito, unindo, naquele momento sagrado das Ave-Marias duas raças que, coesas , deram origem a todos os macaubenses, cuja árvore genealógica há muito havia nascido e expandido no peito daquele homem forte e bravo,indo frutificar nas entranhas de Jandira.
                Dadas as provas cabais, Antônio Brandão de Sousa Figueiredo casou-se sob estrondosa festa com a índia Jandira, constituindo-se dessa forma a primeira família cristã macaubense da qual descendemos.
                Antônio Brandão radicou-se aqui. Implantou e expandiu o comércio, iniciou e desenvolveu a cultura da terra, a criação de animais; fundou o povoado, que se estendeu até a Estiva. A vinda de outros brancos aumentou a população do povoado que se transformou em vila: Vila das Macaúbas e, posteriormente, Macaúbas.


[1] Crônica publicada na Tribuna do Sertão, coluna “Carros e Carreiros e inserida no romance A Caminho da Colina.


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